André Foltran nasceu em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, em 1996. É poeta e tradutor, bacharel em Letras/Tradução pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Foi premiado em dezenas de certames, tendo poemas publicados em diversas antologias, revistas e suplementos literários.
O Jardim do Éden era assustador: não tinha
fantasmas. Qualquer barulho à noite
era um pedaço inegável da realidade.
Mesmo que fosse absurdo: um unicórnio,
um deus caminhando entre os arbustos.
Qualquer barulho, no Éden, só podia ser um barulho
acontecendo fora da nossa cabeça.
Era de enlouquecer.
Se enlouquecíamos no Éden,
enlouquecíamos sem precedentes.
Enlouquecíamos pela primeira vez.
A voltagem segura de eletrochoque
foi regulada em nossas têmporas
(os testes em animais ainda eram tabu na época).
De modo que quando o Prozac chegou
em lindas cápsulas furta-cores
foi com o mesmo status de um deus.
E por dias inteiros fomos felizes pagãos.
Mas haviam intervalos. E não haviam livros.
Era inevitável que olhássemos para os astros
em busca de mais algum entorpecimento.
Que andássemos com cobras.
Que nos voltássemos para os nossos sonhos.
Os sonhos foram os nossos primeiros poemas,
ainda que a autoria se nos escapasse.
Depois vieram as palavras…
E a possibilidade de sonhar acordado…
E a possibilidade de dominar os sonhos…
E a possibilidade de assinar os sonhos…
E de se autopublicar na Amazon.
Aí era fácil escrever um poema feliz.
Escolhíamos uma palavra ao acaso, digamos
“silicone”, e botávamos a palavra nos peitos,
300 mililitros, e éramos felizes para sempre.
Mas com as palavras vieram as primeiras missas.
E com as primeiras missas as primeiras maldições.
E a maldição da Psicanálise.
Era bela, era poesia também, mas não nos explicava.
Éramos um casal sem infância. Pais
da mesma tragédia. Filhos
da mesma orfandade. Cúmplices
do mesmo crime.
E tínhamos tatuagens iguais.
Chegamos a publicar um artigo numa revista qualis A3
(obviamente só Adão o assinava)
sobre “o umbigo como criador da identidade”
que chamou mais atenção pelo estilo neutro e elegante
que a terceira pessoa do plural proporcionava,
até hoje imitado, do que pela nossa tese,
considerada de menor importância, por demais
individualista, diante de questões mais prementes
como a Revolução.
Que não tínhamos umbigo, disseram,
era um fato menos social que biológico.
Ainda possuem um ao outro, tantos nem isso, parem
de mimimi.
Mas eu queria outros.
Mas Adão queria ser Eva.
E eram mesmo horríveis as acomodações
no Hospital Colônia de Barbacena.
Só tínhamos um ao outro naquele galpão
e uma multidão de filhos chorando, gritando,
defecando pelos cantos, um cheiro de mijo
insuportável e nada pra fazer então dissemos:
— Por que não ter outro?
E respondemos:
— Sim, vamos ter outro.
— Outro virá como uma salvação.
— Outro virá como um entretenimento.
— Se chamará 7, porque é o terceiro ou quarto.
— Se chamará Sete porque não há sentido.
— Se chamará Seth porque é um belíssimo nome afinal.
E íamos berrando essas coisas enquanto
tentavam nos imobilizar.
— Mommy, disse Seth a Adão, que terminava
um delineado gráfico (eram tempos mais tranquilos,
Adão tinha conseguido um emprego de terceira corista,
o silicone ainda não tinha deformado, aquele inferno),
mommy você sabia
que a palavra amor rima com dor?
Fotografia: Ilha de Paquetá – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).